Desde que o clima se estabilizou no norte-noroeste fluminense, nos últimos quatro mil anos, é normal o ciclo de chuvas e estiagens no que poderíamos chamar de verão e inverno. No entanto, ultimamente, as chuvas e as secas têm aumentado sua intensidade nas respectivas estações. Parece que esta presumível mudança na estrutura climática está sendo considerada por técnicos, ruralistas, governantes e sociedade como algo natural. Como uma fatalidade diante da qual devemos nos resignar, tentando conviver com ela e tomando providências de curto e médio alcance para atenuar seus efeitos. É como se colocássemos sacos de areia nas portas de nossas casas toda vez que as águas sobem, em vez de barragens permanentes ou de transferência da moradia para um lugar seguro.
Sendo mais claro, ninguém cogita, ao que eu saiba, a possibilidade — ao menos a possibilidade — de estes fenômenos extremos serem já manifestações do aquecimento global. Em vez de se pensar em soluções de longo prazo, continua-se a empilhar sacos de areia nas portas das casas quando chove e carregar água em baldes quando vem a seca.
Se tomarmos o ano de 2007 até aqui, o comportamento do clima deveria levar os cientistas, os ruralistas, os governantes e as pessoas em geral a pelo menos suspeitar de que alguma mudança está ocorrendo ou pode ocorrer. Senão, vejamos. Segundo a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nunca houve um janeiro tão chuvoso quanto o deste ano, desde que a medição da precipitação pluviométrica começou a ser feita. As chuvas torrenciais prolongaram-se fevereiro adentro. Esperava-se que chovesse no mês de março, mas ocorreu uma pequena estiagem. As temperaturas caíram mais durante o outono e o inverno está quente e seco.
Moro no norte-noroeste fluminense desde 1970 e nunca vivi um ano tão atípico em termos climáticos como o de 2007. Segundo informações fornecidas pelo pesquisador Elias Fernandes de Souza, da Universidade Estadual do Norte Fluminense, normalmente, o regime pluviométrico da região não é propício ao cultivo de cana. O desenvolvimento pleno deste vegetal requer uma precipitação pluviométrica anual em torno de 1500mm, mas a média gira em torno de 1000mm, mesmo assim com distribuição extremamente irregular: muita chuva no verão e pouca chuva no inverno. Ainda segundo a Uenf, o volume de chuvas nos meses de junho e julho ficou 71% abaixo do esperado para esta época. Por que não levantar a hipótese de que estas oscilações extremas indicam mudanças na estrutura climática dos últimos quatro mil anos? É melhor ter cautela do que insensatez.
Desde janeiro, só ouvimos a choradeira dos ruralistas. O governo precisa urgentemente construir um muro de lamentações para eles. Reclamam por chover demais ou de menos. Pressionam os governos municipais, estadual e federal a desviar dinheiro público para seus negócios, alegando que eles são também nossos negócios, pois geram empregos e tributos. Rios de dinheiro (com duplo sentido, por favor, já que estamos falando em excesso e escassez de água) que poderia ser aplicado em empreendimentos ambientais e sociais vão para uma atividade antiga, atrasada e danosa do ponto de vista ambiental e social.
Parece que os ruralistas vão passar o ano de 2007 com muita agressividade. Com o alagamento das partes baixas pelas copiosas chuvas de janeiro e fevereiro, eles passaram a idéia de que só o problema deles é importante e exigiram limpeza e dragagem de canais. Conseguiram que a Superintendência Estadual de Rios e Lagoas criasse o bastardo Grupo de Ação Integrada, com suas forças-tarefa para atacar o meio ambiente, em vez de contribuir para ativar o Consócio da Região Hidrográfica 09, a instância legal e legítima para gerenciar as bacias do baixo Paraíba, da Lagoa Feia e dos canais. Para aparentar legitimidade, convidaram alguns pescadores a integrarem o grupo.
O nível do rio Paraíba está tão baixo que suas águas não conseguem entrar pelos canais. Então, eles já estão reivindicando bombas para fazer o que a lei da gravidade não está conseguindo a fim de obter o mínimo de água para irrigação. Para comover a opinião pública, os presidentes do Sindicato Rural, da Asflucan e da Coagro tentam comover a opinião pública acenando com o risco de extinção da agroindústria sucro-alcooleira na região. Chegam mesmo a declarar que plantam cana e produzem açúcar e álcool por amor à atividade.
Ao mesmo tempo, estão preocupados com as próximas chuvas. Para tanto, querem a limpeza do canal da Flecha justo no Durinho da Valeta, que motivou dois levantes de pescadores na Lagoa Feia quando o DNOS tentou removê-lo. Espero que “limpeza” não signifique “remoção”. Espero também que os pescadores fiquem muito atentos a esta “limpeza”. Por sua vez, o presidente da Asflucan informa que o Fundecana só liberará recursos para os plantadores nas áreas de risco (leia-se, áreas subtraídas às lagoas) depois das chuvas de verão. Como o assunto dá pano pra mangas, voltarei a ele.
Depois de promover duas reuniões democráticas em favor do Consórcio do baixo rio Paraíba do Sul — na Fundenor e em Quissamã — e da definição da Região Hidrográfica 09, a Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla) tomou duas ações autoritárias e atrasadas. A primeira foi criar o Grupo de Ação Integrada (GAI) reunindo apenas os ruralistas, que tentaram dar-lhe uma camuflagem de legitimidade convidando alguns pescadores para assistirem às decisões em prol da cana e do gado, sabotando, assim, o Consórcio legal e legitimamente criado. A outra foi adotar uma orientação técnica retrógrada, rasa e parcial na gestão dos canais que interligam o rio Paraíba do Sul à lagoa Feia e ao rio Guaxindiba.
Estas duas decisões conspiraram contra a ativação e o fortalecimento do Consórcio bem como imprimiram uma direção pobre, pragmática, imediatista e subalterna ao trato da rede de canais. Foi a Serla, pressionada pelos ruralistas e usineiros, que levou os ecologistas a ingressar com uma representação contra o GAI (o que significa contra a Serla) nos Ministérios Públicos Federal e Estadual.
A sofreguidão dos ruralista e usineiros em conseguir ganhos ou a não sofrerem perdas a qualquer custo e a ambição da Serla de atuar sozinha, enquanto órgão não governamental de meio ambiente, numa Região Hidrográfica subordinada ao Comitê da Bacia do Rio Paraíba do Sul (Ceivap), pelo menos em metade dela, representa um golpe. Certamente, acarretará conseqüências danosas do ponto de vista ambiental, econômico, social, político e institucional. Para colocar as coisas no seu devido lugar, vislumbro, em caráter de ensaio, as seguintes atitudes:
1) Admitir a possibilidade de mudanças geográficas por conta do aquecimento global. Se o nível do mar subir e os fenômenos climáticos extremos se acentuarem, haverá perda de território, alterações de salinidade do solo, prejuízos ambientais, econômicos e sociais.
2) Formulação de um zoneamento ecológico-econômico regional. Este zoneamento separa as áreas de valor ecológico daqueles destinadas ao extrativismo, à agropecuária, à indústria e às cidades. Delimitando-se as áreas de preservação permanente, as unidades de conservação, as destinadas a proteção futura e as reservas legais, define-se a zona ecológica. Promovendo-se o zoneamento edafo-climático, estará estabelecida a grande zona econômica rural. O presidente da Associação Fluminense dos Plantadores de Cana (Asflucan) já deu entrevista sobre o assunto na imprensa local, mas não esclareceu o que entende por plano diretor. Este plano não pode mais ser apenas municipal. Ele tem de, no mínimo, aplicar-se às áreas dos tabuleiros, da planície aluvial e das restingas. De pronto, reconhecemos três grandes zonas para a agropecuária até definição científica minuciosa: a mais alta destinar-se-ia à cana, entre outras culturas, pois a mono-atividade é sempre perversa para o ambiente e para o trabalhador. A diversificação daria mais estabilidade à economia regional. Agora, os plantadores de cana e os usineiros tentam nos comover com a possibilidade de extinção da agroindústria sucro-alcooleira, como se fôssemos chorar copiosamente. Numa economia diversificada, a crise de uma atividade é compensada com o funcionamento normal de outra. A segunda zona é constituída pelas terras baixas. Depois de demarcados os rios e as lagoas com seus leitos maiores, as terras baixas destinar-se-iam às culturas de ciclo curto, também diversificadas, praticadas entre os períodos chuvosos. Haveria espaço para o gado, que pode se deslocar nas cheias. O ideal é a agricultura familiar de alimentos. A terceira zona compreende terras salinizadas ou que se salinizam, apesar de todo o esforço do Departamento Nacional de Obras e Saneamento em expulsar o sal para o mar. A melhor opção para elas é a pesca.
3) Delimitação precisa da Região Hidrográfica 09. Ao sul, ao norte e a oeste, esta RH já está delimitada. A leste, proponho o rio Guaxindiba, que está ligado ao Paraíba em sua foz. Como manda a norma, esta RH só pode ter um comitê de bacia, reunindo representantes dos governos federal, estadual, municipais, dos produtores e da sociedade civil. O órgão deliberativo máximo da RH estará vinculado ao Ceivap, incluindo a bacia da Lagoa Feia. Assim, dissolve-se o nefando Grupo de Ação Integrada.
4) Gestão das bacias da RH 09. O plano de gestão da bacia deve ter orientação ecológica, inclusive para o uso econômico dos ecossistemas aquáticos. Fala-se muito em desenvolvimento sustentável como fachada. No entanto, ele nunca é praticado. Este plano deve distinguir ações a curto prazo (emergenciais) e a médio prazo, sem nunca perder de vista o longo prazo, que pretende a sustentabilidade de todos os sistemas incluídos na RH 09.
Mais uma vez, suspeito estar pensando alto no meio de broncos.
Fonte: Folha da Manhã (Arthur Soffiat
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